História de amor
Bernardo Carvalho
1.
Antes mesmo de ele completar dez anos, a mãe já o obrigava a acompanhá-la até o cais para negociar o peixe que os homens traziam de manhã. Não é por acaso que o menino acabou tomando tamanha aversão aos negócios e ao comércio. A cena é sempre a mesma. Mãe e filho vêm pela rua empoeirada que margeia o rio, ambos vestindo galabeyas muito simples e calçados de alpercatas. Ela vem coberta de preto da cabeça aos pés, caminha como se passeasse sem rumo num domingo de sol. Ele é tão pequeno e está tão pouco à vontade que, apesar da galabeya encardida, com a bainha esfiapada arrastando pelo chão de terra, mais parece vestido para uma ocasião especial. A mãe apóia o cotovelo sobre a pilastra no alto da balaustrada de um dos lados da escada que leva da rua ao rio e espera, como quem não quer nada, os pescadores que em algum momento vão subir com sacos plásticos na mão. O menino olha ao redor, para a rua e para a cidade. Evita cruzar com o olhar dos turistas que chegam nos barcos e que, por serem estrangeiros, são as únicas testemunhas da sua humilhação. Os locais mal prestam atenção no menino que não quer estar ali, ao lado da mãe, mas tampouco tem escolha. Antes mesmo da morte do pai, quando este já não conseguia se levantar da cama, ele entendeu que não tinha escolha. Os homens não se rebaixam a falar com uma mulher sozinha e é preciso levar comida para casa. Enquanto espera com a mãe no alto da escada, ele sonha com o dia em que vai descer o rio até o Cairo, como o irmão, para nunca mais voltar.
São três os homens que sobem os degraus de pedra, conversando, como se não tivessem percebido a mulher de preto no alto do talude, apoiada sobre uma das pilastras da escada. Cada um traz um pequeno saco plástico na mão. Ela os observa. Ao chegar ao alto da escada, um dos pescadores vai até ela, deposita o saco plástico aos seus pés e se afasta sem lhe dirigir a palavra, sem nem mesmo lhe dirigir um olhar. Vai se juntar aos outros dois, que o aguardam do outro lado da escada, junto à balaustrada oposta, conversando de costas para a mulher, fingindo ignorá-la. A mulher abre o saco, examina os peixes no interior e tenta dizer alguma coisa, de longe. O homem, conversando com os amigos do outro lado, finge que não ouve. É sinal de que a oferta foi baixa. Ela insiste, diz mais alguma coisa, mais alto – que os peixes não prestam, por exemplo –, para justificar a oferta, e afinal ele se dá o trabalho de retrucar com um gesto desagradável. Ameaça pegar o saco de volta e ir embora. É sempre assim. Ela não ousa se aproximar dos homens e, embora isso seja natural segundo os costumes locais, o menino sente a humilhação de estar do lado errado da escada, com a mãe, e não com os homens, por força das circunstâncias. É o olhar dos turistas estrangeiros que o humilha. Não será assim quando crescer e for embora para o Cairo.
Quando a mãe e o pescador chegam afinal a um acordo, é a vez de o menino entrar em cena. Ela lhe dá o dinheiro e o empurra. Ele vai contrariado até a balaustrada oposta, onde estão os homens, e entrega o dinheiro ao pescador. Espera o troco, que não vem de graça. Antes, o pescador desdenha dele, passa a mão na cabeça do menino. E é a mãe quem reage de longe, dizendo alguma coisa que faz o pescador fechar a cara e entregar por fim o troco. O menino volta para a mãe e para casa, com o saco de peixes na mão, enquanto os homens se afastam, contando o dinheiro e rindo.
A cena se repete com ligeiras modificações até o dia em que, aos quinze anos, ele é levado pelo tio para visitar o irmão mais velho, preso no Cairo. É a primeira vez que vai à cidade grande, o que o deixa em êxtase apesar do motivo. Nas visitas anteriores, o tio foi sozinho. Em casa, ninguém fala da prisão do irmão. A mãe chorou durante dois anos e depois parou e nunca mais tocou no assunto. Com a morte do pai, o tio assumiu as decisões do homem da casa. É dono de uma pequena loja de tecidos e os ajuda desde que o sobrinho mais velho foi preso no Cairo e deixou de mandar dinheiro. Agora que o menor fez quinze anos, chegou a hora de também ir visitar o irmão.
A prisão impressiona o menino. Não corresponde à imagem que ele fazia da cidade grande. À sua maneira, a prisão é muito pior do que uma casa núbia, de barro, nas franjas do deserto. O irmão está doente, tem hematomas e cortes espalhados pelo corpo. Os guardas dizem ao tio que os ferimentos são resultado de uma briga entre os presos, faz um mês, e que o sobrinho mais velho teve sorte, escapou por pouco. Falam da morte, mas o menino não entende o que querem dizer, uma vez que o irmão continua preso. Não sabe o que isso tem que ver com a sorte. O irmão mais velho não diz nada, mas, assim que os guardas se distraem, pede ao tio que leve o irmão menor à casa de alguém e lhe diz o endereço. Fala baixo, ao pé do ouvido do tio, de modo que o próprio menino nada ouve.
Quando saem da prisão, o tio o leva até um emaranhado de ruas no centro da cidade e pede que não saia dali, que o espere, sem arredar o pé, no meio do caos dos mascates e do comércio que tanto o horroriza, e que evite as tentações. Diz que não vai demorar. Tem um encontro ali perto. Não diz que encontro é esse nem onde. Quer ver antes o lugar e as pessoas às quais deve entregar o sobrinho para cumprir o desígnio do irmão mais velho.
Enquanto espera, o menino ouve uma música que vem de um prédio e se esquece das recomendações do tio. Aproxima-se, curioso, e percebe uma movimentação estranha no interior do prédio antigo com muxarabiês nas janelas. Entra. No pátio interno, um grupo de homens de branco gira sem parar ao som de uma música hipnotizante. Ele não compreende o que estão fazendo, mas tampouco precisa compreender. Cinco homens giram sem parar, numa cadência frenética, que vai aumentando conforme os quatro músicos escondidos na sombra também se inflamam com seus instrumentos, num ritmo que evolui para uma explosão que nunca chega. O menino permanece com os olhos grudados no círculo de homens, ao som da música hipnotizante. Quer girar também, mas não consegue mover os pés. Não sabe definir que sentimento é esse, é mais do que uma vontade, é uma coisa que ele não poderá deixar de fazer mais cedo ou mais tarde. Terá que girar, como aqueles homens, até cair. Eles giram, em roda e em torno do próprio eixo, como os planetas, aproximando-se de um estado que, embora não conheça, o menino pode imaginar como se já o tivesse experimentado, um estado que esteve desde sempre dentro dele à espera de um modo de se expressar. De repente, a cadência começa a arrefecer e os homens vão parando de girar. É nesse instante que, da forma mais inesperada, um deles pega pela mão o que está a seu lado e o beija na boca, enquanto os outros, embora bem mais lentos do que antes, continuam a girar sobre o próprio eixo, indiferentes ao que acontece ao redor. Estão de olhos fechados, mas o menino mantém os seus bem abertos. É tudo tão rápido que ele já nem sabe o que viu e o que imaginou quando os dois homens se separam e, como se nada tivesse acontecido, retomam o movimento, continuam a girar lentamente ao lado dos outros, de olhos fechados. O menino continua paralisado quando a mão do tio o arranca daquele estado letárgico com um puxão violento no ombro. O tio pergunta ao menino o que ele está fazendo ali, por que não ficou esperando onde tinham combinado. O menino não sabe o que responder, poderia dizer simplesmente que ouviu a música e quis ver o que era – o que seria tão mais simples e verdadeiro –, mas tudo o envergonha, como se tivesse sido pego em flagrante de um crime que não chegou a cometer. Ele não sabe por que está morrendo de vergonha, enquanto o tio grita com ele e o tira dali à força, até perceber que um grupo de turistas estrangeiros o observa com o mesmo olhar de quando ia ao cais negociar o peixe com a mãe.
2.
Quando completou quinze anos, recebeu de presente uma coletânea dos poemas de Kaváfis e nunca mais parou de sonhar com o mar, com os homens e com o Oriente. Queria ver os “belos corpos de mortos que nunca envelheceram”. O mesmo livro que o pai arrancou das mãos do filho no dia em que este lhe dissera que ainda não tinha se decidido entre a história e a arqueologia (mas que certamente não seguiria a carreira familiar, não seria médico como o pai, como os irmãos, como os tios e como os primos), o mesmo livro o pai arremessou contra a parede, meses depois, quando passou por dificuldades financeiras, gritando que só faltava o filho ser veado.
Quando completou dezoito anos, o menino ganhou da mãe uma viagem até Alexandria, para conhecer os lugares onde vivera e amara o homem que, sem nenhum evento exterior, sofreu cataclismos interiores, em silêncio, sozinho, e os expressou num punhado de poemas extraordinários: “Não acharás novas terras, tampouco novo mar. A cidade há de seguir-te”. Mesmo assim, ele queria conhecer a cidade onde o poeta vivera e amara, como ele vivia e amava no Rio de Janeiro, a milhares de quilômetros, sob outras estrelas, diante de outro mar. Caminhava pela noite do Rio, imaginando Kaváfis, em Alexandria, à procura de rapazes, mas sempre que os encontrava, e assim que começava a lhes falar do poeta e a lhes recitar os primeiros versos, logo o deixavam só com seus poemas. E só lhe restava continuar girando, sozinho, pelas ruas e depois ao som da música hipnotizante dos inferninhos. A cidade podia segui-lo aonde quer que fosse, mas ele tinha esperança de que pelo menos em novas terras e em novo mar haveria de encontrar quem os poemas seduzissem.
3.
Desde o dia em que o tio o levou ao Cairo, ele nunca mais voltou para casa, nunca mais reviu a mãe nem os peixes. Cumprindo o desígnio do irmão mais velho, o tio o deixou na casa daqueles que, na falta de um pai, deveriam zelar pela sua educação. E, durante todos os anos em que estudou a palavra do profeta, ele procurou, em segredo e em vão, pelas ruas, passagens e becos, os mesmos homens de branco, girando ao som da música hipnotizante que ouvira ao chegar à cidade. Bastaria ter perguntado a alguém na rua. Mas nunca se atreveu. Temia de alguma maneira que Deus o ouvisse e que seu interesse pelos homens que giravam acabasse chegando aos ouvidos do irmão mais velho, na prisão. Uma única vez, traído pela solidão, confidenciou a um colega de estudos a vontade de revê-los, e o assunto, como havia previsto, foi parar na prisão. Na semana seguinte, durante as horas de visita, o irmão mais velho o fitou com olhos de fogo, falou-lhe das tentações, do demônio e dos ímpios estrangeiros, e o exortou a continuar rezando.
Foi o que ele fez. Rezou sem parar, durante anos, até entrar naquele hotel, às 17h de uma tarde de domingo, e passar pelo detector de metais com uma mala vazia. Como fora instruído, atravessou o lobby simplório, com tapetes encardidos no chão e infiltrações nas paredes, e se dirigiu à recepção, onde pediu um quarto com vista para a praça. Era o código. O recepcionista lhe ofereceu um quarto no primeiro andar, uma artimanha para o caso de alguém ouvi-los e depois poder testemunhar, candidamente, a favor da inocência do recepcionista. O rapaz respondeu que tinha problemas para dormir com o barulho. O recepcionista então lhe ofereceu um quarto de fundos, que ele também recusou. Queria um quarto de frente, num andar mais alto. Ao consultar a planilha, o recepcionista descobriu um quarto disponível no quinto andar – veja que sorte! – e pediu um documento ao hóspede, que lhe entregou, como esperado, um passaporte falso.
Às 17h20, ele abriu a porta do quarto escuro, com luvas finas de látex, para não deixar rastros, e rezou mais uma vez. As cortinas estavam fechadas. Ele as abriu e o sol de fim de tarde o iluminou. Era um homem de dezoito anos, com a vida pela frente. Voltou-se para a mala vazia que deixara em cima da cama, como um hóspede de verdade também poderia ter feito, esquadrinhou o quarto com os olhos, foi até o armário e o abriu. O saco plástico estava lá dentro, no fundo de uma prateleira, como combinado. Era um saco translúcido e esverdeado, como os que os pescadores costumavam depositar aos pés de sua mãe, sempre com os piores peixes, sob o olhar dos turistas estrangeiros que chegavam nos barcos.
Às 18h30, um jovem estrangeiro com uma mochila nas costas chegou à praça e procurou um lugar entre as mesas do lado de fora do café repleto de turistas, na calçada embaixo do hotel barato. Tinha dezoito anos e a vida pela frente. No dia seguinte, ia finalmente realizar seu sonho, conhecer Alexandria, a cidade do poeta. Sentou-se, pediu uma coca-cola e tirou da mochila um livro usado. Abriu-o na página marcada e, depois de olhar para a praça e para céu do crepúsculo, leu para si o primeiro verso de um poema que conhecia de cor: “O que esperamos na ágora reunidos?”, como se o lesse pela primeira vez.
Às 18h40, o rapaz da mala vazia voltou ao quarto no quinto andar depois de uma breve ausência. Tinha ido se certificar de que a saída de serviço para o telhado estava mesmo aberta e que, como lhe haviam dito, dava acesso aos prédios vizinhos, sua rota de fuga. Fechou as cortinas e procurou o saco plástico no fundo do armário. Abriu o embrulho malfeito, guardado dentro do saco plástico. Observou, na penumbra do quarto, o objeto sobre a colcha desbotada, cor de laranja, que cobria a cama. Rezou. Por alguns segundos, não se mexeu, não fez nada, assim como, anos antes, ficara imóvel diante dos homens de branco que giravam sem parar.
Logo ali embaixo, o jovem estrangeiro pôs-se a ler o primeiro verso de outro poema que conhecia de cor: “Desde dez e meia, ele esperou no café”. Cinco andares acima, o rapaz terminou a reza e se debruçou sobre o artefato. E assim ficou por alguns segundos, antes de tocá-lo. Não podia errar. Não teria uma segunda chance. Qualquer erro podia ser fatal. Fazia o que devia ser feito, ele repetia em silêncio, para se convencer. Rezou de novo, mas em vez de virgens no paraíso, desta vez viu os homens de branco girando, sempre girando. Manipulou o objeto como lhe ensinaram. Às 19h, tomou-o nas mãos, com cuidado, aproximou-se da janela e, por entre as cortinas, deixou-o cair sobre as mesas do café, cinco andares abaixo, onde se reuniam os turistas estrangeiros no final da tarde e onde um rapaz, terminando sua coca-cola, com um livro aberto na mão, chegava ao final de mais um poema que conhecia de cor.
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Imagens: Sebastian Freire
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