Cidade Livre (fragmento)
João Almino
Minha insônia de hoje é o prolongamento daquelas horas quando, na escuridão da noite, eu ouvia barulhos de bêbados pela rua, os latidos de meu cachorro Tufão, as araras que moravam no fundo da casa ou alguma coruja solitária, e abria os olhos para o caleidoscópio de cinzas e negros que desenhavam monstros nas paredes.
Para dar vida à história, bastava eu me transpor para um dia de minha infância, me imaginar no meio de uma avenida da Cidade Livre, e então veria minhas tias desfilando suas formas e trejeitos, Valdivino sentado em frente a uma mesinha transcrevendo cartas, papai conversando na porta de um bar, uma menina de tranças e olhos negros andando de bicicleta, Tufão me seguindo, e veria o colorido das lojas, dos prédios de madeira, carros gordinhos e pretos estacionados na lateral com seus pneus exibindo círculos brancos, e então subiria um cheiro de gasolina, de óleo, de monturos e bostas de cavalo, e apareceriam em tela grande e colorida histórias de crimes, pecados, desesperos e grandes futuros.
Olho para um dia de minha infância e vejo três personagens masculinos conversando em frente a nossa casa, para onde tia Francisca acaba de trazer algumas cadeiras, e nem preciso descrever para vocês a casa de madeira e sem calçada igual a tantas outras que se veem nas fotografias daquele tempo, em frente à qual, eu dizia, os três personagens conversam conversas silenciosas, gesticulam frases, enunciam palavras que não ouço ou, se ouço, não entendo e, se entendo, não me interessam, um deles de rosto oval, branco e bem barbeado, com alguma marca de desgosto, olhar agudo e jocoso, expressão de homem bem-sucedido, que acumulou experiências pela vida. Tufão está sentado a seu lado, ouvindo suas conversas de orelha em pé. É papai.
O segundo, com mãos para trás das quais desce o chapéu, tem um corpo musculoso e bem moldado, ar firme e franco em seu rosto queimado de sol, bigodes bem aparados, e quem o olhasse sentiria inveja de sua aparência feliz. É Roberto, quando ainda não se sabia se seria namorado de tia Francisca ou de tia Matilde.
O terceiro, de uma simplicidade tosca, com um chapéu grande demais para sua cabeça pequena, é conversador, parece inteligente e é o único com esporas nas botas, tendo chegado montado num burro, mas, se atrai minha atenção, é por sua fragilidade. Quando tira as mãos dos bolsos, gesticula sem parar, balança-se para a frente e para trás sobre suas pernas de cambito e dá a impressão de que sairá voando se soprado pelo vento. Os outros dois, quando passam por ele, o olham de cima para baixo. Pela descrição vocês já terão adivinhado: é Valdivino.
Que saudades são essas que sentimos de uma felicidade inventada pela lembrança? Não, não é de hoje minha desconfiança nem minha dúvida, que já estavam lá nos meus tempos de menino, mas tive de esperar vários anos para percebê-las. Meus desejos mudaram, minhas aspirações são outras, já fui bem-sucedido antes de perder quase tudo, mas as horas passam da mesma forma em outros relógios, e o sol, diante das construções que encheram a paisagem, pinta com as mesmas cores a manhã e as esconde igualmente no crepúsculo. Você, meu único e fiel seguidor do blog, tem razão, por que remexer no que está quieto e esquecido?
Naquela primeira noite em que reencontrei papai para tirar minhas dúvidas, ele negou o assassinato de Valdivino, era delicado para mim ressuscitar a velha suspeita, e era melhor, ele me disse, acreditarmos na versão da profetisa do Jardim da Salvação, Íris Quelemém, de que Valdivino não havia morrido e talvez nunca viesse a morrer, sempre fora um insone e um sonâmbulo, ainda andava solto, caminhando dia e noite pela floresta, em busca de Z, a cidade perdida. Deixa isso pra lá, João, são águas passadas.
Às vezes, quando eu ficava recolhido a meus devaneios, me invadia a memória nossa vida na Cidade Livre, feita de lugares e cenas, bem como de histórias de papai, de minhas tias e de outros personagens à nossa volta — entre eles, principalmente Valdivino —, as coisas, fatos e pessoas de minha infância dispostos como numa enorme fotografia de família ou como num tabuleiro distante onde a variedade já se havia desfeito na uniformidade imposta pelo tempo. Somente papai podia, pela primeira vez, reorganizar as peças daquele tabuleiro e retirar da imobilidade a minha memória. É que ele não está morto, ninguém o matou, papai me respondia, está viajando ou apenas dormindo, como Íris disse.
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