O leito

Vasallo_2 

Carol Bensimon

Acontece que nasceram numa cidade bem pequena entre duas mais ou menos grandes, um tipo de coisa ruim para o conformar-se, porque assim tinham toda a estrada para olhar, e olhavam. E acontece que na beira da estrada havia uma venda em casa de mil novecentos e trinta e poucos, seus degraus uma arquibancada para as meninas. Ficavam, e toda a tarde. Uns carros iam passando, um carro parava. Titi deixava que as pernas finas se esticas­sem na passagem, as picadas de mosquito em casquinhas de sangue de tanto coçar. A camiseta ia até as coxas, se coxas já tivesse. O viajante pedia licença, entrava, Titi ria escondido. Lina, mais velha em três anos, era um tanto mais triste. Não mostrava perna nem nada, pois alguma coisa já começava a ter. Riscava o nome com uma pedra, só a pulseira com bolinhas amarelas quebrava o preto da roupa. O viajante outra vez ia embora com a coca-cola. Se vinham famílias, tanto melhor, a venda estalava como uma velha senhora. Dona Celestina fazia as somas a lápis na letra demorada de colégio. O viajante se impacientava porque tinha que viajar. E dentro da venda os velhos jo­gavam dominó sem falar um com o outro.

Titi disse assim nuns começos de março: tá quente, a gente podia nadar, e sorriu pra Lina. É porque seguindo a trilha aberta por insistência no meio do matagal, tinha esse rio que aparecia, correndo também como a estrada, indo, até que surgissem nas margens, já bem longe, as serrarias, a usina abandonada e a tristeza dos peixes à milanesa com limão em prato de plástico para quem não podia pagar as férias com paisagem melhor. Mas nada disso tinham visto as irmãs. Lina já não achava no rio tanta graça. Os pés iam grudando no fundo, os dedos roçando o áspero e descendo pela areia, e por onde e por quem tinha passado aquela água era coisa que não dava pra saber. Não respondeu. Titi fez uma bola de chiclete, colocou a língua no meio. Que rio que nada, continuou pensando a Lina. Era ainda pior porque os garotos agora tinham a mania de fumar escon­didos perto da figueira e riam por qualquer bobagem, os pés enfiados pra dentro d’água, falando alto, rindo de quê.

*

Titi entrou correndo no rio, batendo n’água com as palmas abertas. Voavam gotas aos montes, num barulho que tapou o dos carros na estrada. Parece é que ela se divertia sempre, mesmo com a repetição sem fim, e nisso Lina sentia umas pontas de raiva, que abafava logo para não achar que era má. E daí fazia uns mimos e pronto, respirava aliviada. Mas quem sabe o que ia acontecer dali a dois ou três anos com a tal da facilidade da Titi em se agradar de qualquer coisa.

Lina foi entrando na água bem devagar, sentindo o gela­do, ajeitando o biquíni, olhando a margem, o mato. O tron­co da figueira não tinha nem garoto nem bicicleta encosta­da, e a sombra da figueira, ninguém espalhado por cima. Em volta era só pássaro e peixe, o cansaço de não acontecer nada. Cidade besta. Uma praça, uma igreja, nenhum semá­foro, conversas repetidas. Quem consegue sair, vira herói e assunto. No domingo, as famílias vão para a rua e andam de uma ponta até a outra e bem devagarzinho, que é pra cida­de não acabar rápido demais. Passeiam na igreja. Passeiam na praça. O herói vem de longe, a família sai para desfilar o herói. E os outros, nas esquinas, poucas esquinas, fazem concha com as mãos para contar o que ouviram dizer.

Lina foi até a metade do rio. Quando mergulhou, ouviu que a Titi começava a falar alguma coisa, mas então a água ficou por cima do resto. Abriu os olhos lá embaixo. As per­nas da irmã batiam sincronizadas, como um brinquedo de corda posto numa bacia. Lina se aproveitou do silêncio o tempo que pôde. Até que era bom. Deu então para imagi­nar ou relembrar o João. O João era um dos meninos, ou o único. O resto eram os meninos que andavam com o João e só. Riam todos do mesmo jeito (das piadas do João). Sen­tavam todos do mesmo jeito (em volta do João). Jogavam todos o videogame do João. Pela janela se via em muitas noites o azulado da sala, se sentia o cheiro da pipoca, se es­cutavam os dedos batendo os botões, e os gritos dos zum­bis destroçados, pá pá pá, mas o João é muito bom mesmo e o jogo acabou tão rápido que tem que mandar vir outro, porque em casa de João não tem data para ganhar presen­te, nem se precisa provar bom comportamento. Pois então foi esse o João que Lina quis imaginar empoleirado num galho da figueira, com um cigarro atrás da orelha, sorrindo e oferecendo. Quer, Lina? Nunca aconteceu.

Saiu debaixo d’água. Nisso a pequena se chegava com as pernas aos trancos e os olhos grandes cintilando de um medo contente, ansiosa para dar a notícia. Você tá ouvindo isso? Sim, ué, um barulhão, mas o que é? Fala, pô. Titi respirava pesado. E mesmo que a princípio não houvesse mais ninguém por perto, primeiro Titi fez uma concha em volta da boca, para daí então falar.

 *

Correram a recolher as roupas e vestiram algumas peças ao contrário. Mas você viu ou acha quê? De que tamanho e quantas? Lina levou os chinelos na mão por­que não teve paciência de calçar. Iam rápido, as blusas já com as manchas d’água, Titi na frente empurrando o mato com as pernas que pingavam, Lina com o jeans ar­rastando na grama. O João devia estar matando zumbis, enquanto, perto do rio, a cidade se agitava num segredo ainda não descoberto. O pé de Lina deslizou na lama e continuaram correndo. Chegaram perto e ficaram acoco­radas atrás do mato. Eram três retroescavadeiras e esta­vam pondo tudo abaixo. Arrancavam as árvores do chão e essas iam cair umas sobre as outras. Engatavam uma ré e iam de novo. Havia então o barulho dos galhos se que­brando e o farfalhar exagerado das folhas, como se numa grande tempestade que põe as crianças encolhidas debai­xo das cobertas. E das árvores partidas, o cheiro doce da seiva tomava todo o ar de março.

Um espaço vazio já estava aberto no meio do verde amontoado. Era de onde um homem dava ordens e indi­cava direções às retroescavadeiras, e sua barriga gorda e mole aparecia cada vez que levantava o braço. Seis dias sobre sete e era isso o que ele tinha que fazer, derrubar. Passou as costas da mão pela testa e olhou em volta. As meninas se abaixaram ainda mais, uma empurrava a ou-tra por um pedaço maior de moita. O homem limpou a garganta, o som de um animal selvagem que vai atacar.

Cuspiu na terra. A terra antes não parecia tão vermelha quanto estava agora. O homem gritava, apontava, cuspia. Uma retroescavadeira estava brigando com uma grande árvore que não podia correr. A máquina ficou mais baru-lhenta e foi com tudo. Deixou o tronco lascado, e ia então mais uma vez. Cheiro bom. De seiva. De terra mexida. Mais uma vez. Ouviram que se soltava, que perdia, como um rasgo, um som seco, o que faz fogo atiçado. A árvore daí de ponta-cabeça no amarelo da máquina, carregada sem jeito, como princesa levada pelos cabelos.

* *

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* *

Imagen: Lucía Vassallo

Carol-BensimonCarol Bensimon nació en Porto Alegre. Su primer libro, Pó de parede, se publicó en Brasil en 2008 y en Argentina en 2015. Publicó también las novelas Sinuca embaixo d’agua (Companhia das Letras, 2009) y Todos nós adorávamos caubóis (Companhia das Letras, 2013). Fue finalista de los premios Jabuti y São Paulo de Literatura, ha sido seleccionada por la revista Granta como una de las mejores escritoras jóvenes de Brasil.


Publicado el 25 de agosto de 2015 en lenguajes invitados.



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