O único final feliz para uma história de amor é um acidente

by Manuel Iniesta http://www.manueliniesta.com.ar/

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Não posso vêla esta noite

Tenho que desistir

Então vou comer fugu

Yosa Buson (1716‐83)

 

 

1.

Antes do sr. Atsuo Okuda abrir a caixa, tudo estava escuro.

Mais que isso: não havia nada para ser iluminado antes do sr. Okuda abrir a caixa. Se o sr. Okuda nunca houvesse aberto a caixa, nada existiria. O mundo só começou a partir do momento em que o sr. Okuda abriu a caixa e disse a palavra. Ele disse: Yoshiko.

E Yoshiko ficou sendo o meu nome.

Depois que o sr. Okuda disse Yoshiko, eu ganhei, além de um nome, muitos começos e um fim. Eu começo na ponta dos meus dedos, nos fios dos meus cabelos, na planta dos meus pés, nos bicos dos meus peitos, na pele que cobre o vazio que há no meu corpo e em toda a superfície que me faz ser quem eu sou. Não poderia ser outra porque tenho esse corpo, e só eu tenho esse corpo, e eu sou esse corpo.

E o meu fim com esse corpo é um só: servir ao sr. Okuda.

O sr. Okuda é o meu mestre, mas não é o meu criador. O meu criador é a Luvdoll Inc., localizada em 4528 NishiKawagushi, na cidade de Kawagushi, província de Saitama. O meu criador seguiu as instruções detalhadas do sr. Okuda, sob a ordem de encomenda número 2358B. A ordem de encomenda número 2358B, reproduzida em cinco vias que circularam por sessenta e cinco dias pelos diferentes departamentos da Luvdoll Inc., dizia que eu deveria ter olhos castanhoescuros (Pantone 4975C), pele aperolada #5, seios modelo senoi de 220 g com 92,5 cm de diâmetro, umbigo com 0,8 cm de profundidade e vagina extrapequena #2, com pelos pú bicos em corte vertical, profundidade de 8 cm e 4 cm de circunferência.

Outros detalhes foram adicionados em conversas entre o sr. Okuda e a Luvdoll Inc., pois o sr. Okuda foi extremamente detalhista em seus pedidos, e isso fez com que a Luvdoll Inc. estabelecesse novas variações na sua linha de produção. Entre outras minúcias inéditas para a Luvdoll Inc., o sr. Okuda desenhou com detalhes a curvatura dos meus pés, a espessura dos ossos das minhas clavículas e dos quadris.

O sr. Okuda queria que meus ossos fossem salientes, e assim eles são.

O sr. Okuda em nenhum momento se identificou para a Luvdoll Inc. E pagou pelo projeto personalizado a quantia de cinquenta milhões de ienes, o que me faz ser a boneca mais cara já produzida no Japão.

O sr. Okuda é um poeta conhecido e anunciou que parou de escrever há muitos anos. Isso é mentira, porque o sr. Okuda recita poesias para mim, dizendo que pode ria ter pago por mim muito mais do que a quantia de cinquenta milhões de ienes, porque eu sou perfeita, e, porque eu sou perfeita, sou também a única pessoa com quem o sr. Okuda compartilha a sua poesia. Isso o sr. Okuda também me contou num poema que ele escreveu entre as linhas de outro poema.

O sr. Okuda só se dirige a mim em versos.

O sr. Okuda não precisa recitar os versos para que eu os entenda. Eu sei o que ele quer dizer quando olha para mim. Recebo ordens através do seu silêncio porque eu sou esse corpo e esse corpo tem apenas um fim, que é servir ao sr. Okuda, nem que seja ouvindo suas poesias sobre a minha perfeição, sobre os ciprestes numa estrada de Shikoku, sobre o canto dos pássaros ou, ainda, sobre a poesia em si, tema muito caro ao sr. Okuda, que ele também infiltra entre as linhas de outros poemas, e entre essas linhas ainda traça outros poemas sobre muitos outros assuntos, alguns que eu mal posso compreender, e assim os poemas e as linhas dos poemas se multiplicam e se intercalam até o infinito, e através delas o sr. Okuda me faz enxergar não só os belos sentimentos que tem por mim como também o mundo exterior, e o que está sobre ele e abaixo dele, porque eu nunca saí ou sairei de casa, esta que é a minha casa e também a casa do sr. Okuda.

E, pensando melhor, na verdade a minha casa, a minha única casa, é o sr. Okuda. Elemesmo.

 

 

 

 

2.

 

Abaixo do reflexo das luzes avermelhadas no asfalto úmido, o submarino noturno navega pela fundação dos edifícios, entre cabos de eletricidade, túneis de esgoto e metrô. As peças desse navio submerso são grampos em telefones, câmeras e microfones escondidos em quartos e espelhos de fundo falso em banheiros por toda a cidade. Nossos homens‐rãs, funcionários que registram o movimento de quem merece ser observado, têm habilidade para arrombar caixas de correio ou perseguir qualquer um pelo tempo que o sr. Okuda julgar necessário.

Esses equipamentos alimentam os monitores e as caixas de som de uma pequena sala no porão da casa do meu pai, chamada por ele de Sala do Periscópio. É a peça principal do seu posto de observação anônimo. Visto da porta, o conjunto de televisores empilhados parece o olho de uma mosca gigante.

Isso é o que aprendi a vida inteira com meu pai, o sr. Atsuo Okuda: a olhar. Olhar e ser invisível.

Como os dias são cada vez mais longos para o sr. Okuda, e o velho sonha abraçado à boneca Yoshiko quase o tempo inteiro,

 

a tarefa de operar o Periscópio vai ficando sob minha responsabilidade. É a minha herança, ele diria. “É o que vai sobrar de mim, mais do que os meus livros”, ele diria.

O Periscópio do sr. Lagosta Okuda, minha herança, não funcionaria sem a ajuda do sr. Suguro Shibata, professor da Associação do fugu Harmonioso de Tsukiji. O sr. Suguro deve favores a meu pai e, além de tudo, é regiamente pago para fornecer fugus selvagens e fazer todo o serviço sujo de espionagem. Palavra, aliás, que meu pai detesta — ele prefere chamar essa atividade de “observação”.

Vi Suguro Shibata uma única vez, quando criança, há quase trinta anos. Dele, só me lembro do cheiro. O sr. Shibata cheira a alga podre.

Se apenas vi o sr. Shibata uma vez, isso não significa que eu não tenha sido observado por ele em incontáveis ocasiões nas últimas décadas. Empilhadas nos armários da Sala do Periscópio, estão milhares de fitas em Betamax, vhs e depois discos prateados de dvd com imagens da minha vida, da adolescência até o instante em que terminará esse relato. Me acostumei com essa vigilância desde cedo — aprendi a vigiar sendo vigiado por meu pai.

Descobri a Sala do Periscópio no porão alguns anos depois dos meus sentidos começarem a perseguir as mulheres. Nela, organizadas por data e hora, estão gravações clandestinas dos meus primeiros encontros sexuais em motéis de Shibuya, e também de conversas, discussões e reatamentos em jantares, passeios e tardes da minha adolescência.

Com o tempo, embarquei no submarino com meu pai e juntos passamos a navegar atrás do nosso objeto de estudo pela cidade das pessoas invisíveis, pela cidade onde gente de toda a nossa grande nação japonesa vem para ser esquecida, pela cidade assimétrica que carrega em si todas as outras e nenhuma delas.

 

 

Nesses momentos, o sr. Lagosta Okuda diz em seus sonhos palavras que entram nos meus:

— Um dia você entenderá que o único final feliz possível para uma história de amor é um acidente sem sobreviventes. Sim, Shunsuke, meu estorvinho, meu pequeno fugu idiota: um acidente sem sobreviventes.

 

J.P. Cuenca Nació en Río de Janeiro en 1978. Participó de diversas antologías en Brasil y es autor de las novelas "Corpo Presente"(Planeta, 2003), "O dia Mastroianni"(Agir, 2007), “O único final feliz para uma historia de amor é um accidente” (Companhia das Letras, 2010), publicado también en Portugal, España, Alemania, Estados Unidos, Finlandia y Francia. Es autor de una antología de crónicas llamada "A última madrugada" (Agir, 2012), que recoge sus textos publicados en Jornal do Brasil y O Globo. También ha colaborado para publicaciones como Babelia (El País), Playboy, Vogue y Time Out. En 2007 fue seleccionado por el Festival Hay como uno de los 39 jóvenes autores más destacados de América Latina y el año pasado fue elegido por la revista Granta como uno de los 20 mejores escritores brasileros menores de cuarenta años.


Publicado el 10 de febrero de 2014 en lenguajes invitados.



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